Esse é um artigo publicado no blog do Reinaldo Azevedo....achei espetacular....leiam com carinho:
quarta-feira, 4 de novembro de 2009 | 4:47 Eu estou começando a ficar com um certo receio da tal Uniban. Pode ser que se esteja desenvolvendo por lá uma nova civilização, temor que já expressei aqui outras vezes. Sim, claro, não se deve generalizar, não é? Certamente, entre os 12 mil estudantes, há os que não estão aptos a encarar os nossos ancestrais e não endossam aquela estupidez. Mas expresso o receio de que alguns já tenham chegado lá.
Por incrível que possa parecer, nesta terça-feira, boa parte dos, como direi?, estudantes parou suas atividades para aguardar o prometido retorno da jovem Geysi Arruda, aquela do vestido vermelho, o que acabou não acontecendo. Muitos deles posaram para fotos com nariz de palhaço e organizaram um protesto. Contra quem? A maioria estava mesmo contra Geysi. Uma das alunas filosofou: “Ela provocou. Se ela apenas sentasse na cadeira, isso não ia acontecer. Por que justamente nesse dia ela subiu pela rampa?” Como se nota, subir a rampa de vestido curto, e vermelho!!!, pode resultar em linchamento na Uniban.
Um dos organizadores do protesto exibe assim o seu pragmatismo: “Eu quero limpar o nome da universidade em que estudo. Eu não fiquei três anos sentado para conseguir meu diploma e ver ele manchado por causa de uma palhaçada”. Ele acredita que essa nova manifestação limpa o nome da faculdade… Que diabo se passa na universidade que conferiu o diploma de direito a Vicentinho e a Luiz Marinho, que já foram até garotos-propaganda da instituição, uma universidade privada, mesmo exercendo cargo público? Eu não sei. E é preciso ver até onde esse mesmo “diabo” não se passa em outras instituições do gênero.
Içami Tiba
Antes que continue, quero aqui lastimar uma entrevista do “psiquiatra e educador” Içami Tiba, colunista do UOL, que afirmou, numa entrevista em vídeo, que a roupa da Geysi era mesmo inadequada, sugerindo que ela despertou, digamos, os instintos sexuais primitivos da rapaziada, que então reagiu. No dia em que morre o antropólogo Claude Lévi-Strauss, Içami parece não ver muita diferença entre um bando de homens e um bando de chimpanzés, que costumam estuprar as macacas de outras comunidades em grupo. Quem fala demais, é o caso dele, acaba dando bom-dia a cavalo!
Quero saber qual é o embasamento teórico do que ele diz. Os estupradores estão em todos nós? Todos somos potencialmente assassinos? Desejamos secretamente matar o nosso pai para ficar com a nossa mãe? Tivemos um medo inconsciente de que ele cortasse o nosso pirulito, antes que virasse um potentado? Pois é… Uma coisa é traduzir Freud para as massas sem lhe retirar a complexidade. Outra é transformar tudo em pílulas de falsa sabedoria. A única coisa decente que um psiquiatra tem a dizer nesse caso é o que também diria um médico, um dentista ou um padeiro: cometeu-se um crime na Uniban. E não há psicologia que possa amenizar o que lá se deu. O nome daquele crime é intolerância. Ora, o racismo também tem raízes psicológicas; a misoginia — ódio à mulher — está inscrita no inconsciente de muita gente. Ocorre que a civilização se encarrega de reprimir a besta que há em nós. Içami Tiba está é piscando para a besta. E para as bestas. Se é para falar da adequação da roupa de Geysi, que tal chamar uma consultora de moda?
Voltando
A direção da Uniban disse que, até agora, não conseguiu identificar os responsáveis pelo ocorrido. E ousaria dizer que nem vai. Nota-se que há, arraigada por lá, uma cultura da intolerância e uma relação com o curso que está mediada apenas pelo pragmatismo: “Estou aqui para pegar o meu diploma”. Posso compreender esse sentimento e até enxergar nele uma virtude: a clientela está empenhada em obter o grau para, quem sabe?, subir na vida, ter aumentado o seu salário, ser promovida. Em si, isso não é ruim. Todos devemos desejar uma vida melhor. Não há mal nisso.
Temo, no entanto, que boa parte das ditas universidades brasileiras esteja se reduzindo a isso, sem qualquer outro cultivo. Reitero: o respeito à inviolabilidade do outro é questão de princípio, inegociável. Geysi é uma garota pobre, da periferia de Diadema. Trabalha, ou trabalhava, num mercadinho do bairro. É visível que não tem grande traquejo social. Nota-se isso na sua fala, na sua gramática. Vem de um estrato da sociedade em que, atenção!!!, a tolerância com a diferença já não é a marca. E isso vale também para boa parte de seus colegas.
Ela parece ser excepcionalmente jovem para o grupo: 20 anos. Muitos dos que concedem entrevistas dizem ter 26, 27, 28 anos — idade em que as pessoas costumam já estar formadas há uns bons cinco ou seis anos. O fenômeno precisa ser mais bem-estudado, mas intuo que são pessoas que estavam fora do ensino superior e foram sendo incluídas em razão de um conjunto de fatores: políticas públicas de ingresso ao ensino superior; barateamento do valor das mensalidades; facilidade de ingresso, uma vez que basta querer fazer o curso — e poder pagar por ele — para ter acesso, então, ao ambicionado diploma…
Até aí, muito bem. Não serei eu a combater a expansão do ensino universitário. Seria inútil. Os demagogos venceram essa batalha. É evidente que a formação técnica seria mais eficiente e barata. Mas deixemos isso para outra hora. Que se expanda, então, o ensino universitário, hoje com a ajuda do dinheiro público. Mas com que qualidade isso está sendo feito? Eis a questão. NÃO SE ESTÁ BARATEANDO A UNIVERSIDADE EM SENTIDO MAIS AMPLO?
A Uniban — e outras universidades do mesmo nível — estão proporcionando à sua clientela uma vivência estudantil que seja distinta do ambiente de onde vieram? Um ambiente nem sempre tolerante; um ambiente nem sempre respeitador das diferenças; um ambiente nem sempre voltado para o cultivo da reflexão; um ambiente nem sempre afeito a delicadezas e matizes, sem os quais não se respeitam direitos individuais…
Esse é o problema. Estamos diante de um óbvio mal-estar. E reitero que só não há uma comoção nacional porque a garota não se enquadra em nenhuma dessas minorias de manual. Se fosse lésbica e tivesse beijado uma namorada, teria sido certamente hostilizada, mas, ao menos, as lésbicas teriam corrido em seu socorro. Se fosse negra e tivesse comparecido nos mesmos trajes, teria sido hostilizada, mas lhe teria restado a alternativa de denunciar “racismo” — e a secretaria federal que cuida do assunto teria ido em seu socorro. Mas ela é só o pior tipo de desassistido que há hoje no Brasil: mulher, branca, pobre e heterossexual. Ou seja: ela é o verdadeiro negro do Brasil. E ainda usa minissaia? Aí já é demais, não é? Como diz aquela garota, quem mandou ela subir a rampa? Santo Deus!!! E antes que os chimpanzés leiam errado o que escrevi, observo: aquela manifestação é inaceitável com qualquer um: lésbica, heterossexual, preta ou branca.
A questão
Na superfície, temos apenas pessoas malcriadas que se manifestaram de modo inadequado — ou que, no dizer de um vice-reitor, não sabem conciliar direito os bares das redondezas com o curso. E ele não será demitido, sei bem. Na essência, o que temos, aposto, é uma universidade sem vida universitária; uma universidade sem o cultivo da universalidade; uma universidade sem o devido debate de valores; uma universidade que, em suma, não forma universitários.
Houve um tempo, e havia certa ilusão naquilo, em que a universidade sonhava poder elevar o padrão de civilização das ruas; hoje, são as ruas que rebaixam o padrão das ditas universidades. “O povo é isso aí, Reinaldo”. Não lido com essa categoria, vocês sabem. O povo não me interessa. Os indivíduos, sim. Por isso, não sei se ele é assim ou assado. Sei que, numa universidade — ou mesmo nos botecos que as circundam —, aquilo é inaceitável.